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domingo, 9 de janeiro de 2011

Distúrbio



Prólogo:      Tarde de sol. O vento soprava pouco, mas fora o suficiente para empurrar o balanço de madeira em um playground. O brinquedo ia e voltava, emitindo um som de ferrugem que incomodara a quem estivesse por perto. Mas ninguém estava ali.
                De longe, ouviam-se passos que corriam rapidamente. Passos pequenos, desajeitados, de criança.
                O balanço, de repente, parou exatamente no centro, como se o tempo parasse. Como se percebesse a aproximação da menina.
                A velocidade dos passos diminuía conforme a aproximação ao brinquedo.
                Meg parou a alguns metros de distancia do balanço, olhando para frente como se estivesse paralisada. Sua cabeça girou lentamente para o assento do brinquedo, sorriu e disse:
                - Vamos Rebeca. Está na hora do Jantar.
                Ela estendera sua mão para o vento, como se fosse segurar a de alguém, e caminhou em direção a saída do parque, perguntando a alguém que não se podia ver:
                - O que você vai querer comer hoje no jantar?

               
Distúrbio
O farol quase lhe cegara os olhos, mas Janet pudera pressentir que aquele era o carro escuro e silencioso do doutor Logan Bryan que, ao descer do automóvel, aproximou-se tirando o chapéu preto para cumprimentá-la.
                - Boa noite, senhora Janet.
                - Boa noite, doutor – disse ela, num tom apreensivo, de aparência um tanto preocupada e amedrontada. Algo houvera ocorrido e Logan já sabia o que era.
                Os diálogos foram poucos e, rapidamente, os dois adentram a pequena casa – de dois cômodos e um porão – localizado no meio de uma medonha estrada tomada de matagais e árvores, apenas iluminada pelo brilho do luar. Mas, naquela noite, o céu estava fechado, frio e tudo era tomado de uma densa e baixa névoa.
                O ranger da porta de madeira indicava que os dois já haviam entrado.
                A porta se fechou.
                Do lado de fora, a luminosidade das poucas velas acesas refletiam pela única janela de vidro da frente e, detrás das cercas de arame – que dividira a casa da estrada – dava-se a impressão de que o lugar era abandonado, pois não houvera energia elétrica.
                Colocando o casaco preto e o chapéu na velha e estreita mesa de vidro da cozinha, Logan supôs:
                - Ela piorou de vez?
                - Eu já não a reconheço mais, doutor – disse Janet, emocionada com o que dissera a ponto de querer chorar – Os remédios já não estão fazendo mais efeito.
                O doutor observava o sofrimento da mãe, que continuava a relatar os distúrbios de sua filha, Meg.
                - Ela urina na cama, vomita propositadamente, arranca bolos de cabelo com as mãos, corta os pulsos com facas e unhas... Ela já quebrara três dentes com um martelo que roubara do porão... Está completamente descontrolada. Eu não sei mais o que fazer! Ah, meu Deus...
                Pelo que Logan sabia, Meg sofria de distúrbios mentais. Ele já a examinara várias e várias vezes, indicara-lhe inúmeros remédios que não adiantaram. Meg estava pior do que antes e o motivo ele ainda não sabia. Por enquanto.
                - Deixe-me vê-la. Onde ela está. No quarto?
                O silêncio da mulher e o revirar de seus olhos para o vazio deixou-o intrigado: Ela está escondendo-me algo – pensou.
                - Senhora Janet! – Um aumento no tom de voz despertou-a e a verdade veio à tona:
                - Ela... Ela fugia do quarto e corria para a estrada. Eu temia que fosse atropelada, seqüestrada ou estuprada. E suas loucuras estavam passando dos limites e me deixando louca também. Eu não tive outra escolha a não ser... Trancá-la no porão.
                Ele não estava impressionado com aquele ato, já que não haveria outro lugar para prender alguém que estivesse à beira da loucura naquela pequena residência. Era o melhor a se fazer, pois nunca se sabe o que um louco pode fazer quando está desorientado.
                O porão era a alguns metros de distância da cozinha, com algumas escadarias em direção abaixo. E antes que o doutor fosse para lá, Janet lhe avisou:
                - Logan, eu a prendi há três dias. E durante esses três dias eu desci para alimentá-la e deixar os comprimidos. Ela está lá, eu posso sentir seus passos, sua respiração... Mas não consigo ver seu rosto, nem seu corpo.
                Logan acatou aos avisos da mulher, mas o que ela lhe dissera não o assustava. Ele era um especialista em tratamentos psicológicos e já presenciara casos piores do que aquele. No entanto, a mãe da menina não terminara de avisá-lo:
                - Mesmo levando uma vela acesa para lá, algo faz com que a chama se apague. Eu não sei o que há naquele porão, além de minha filha. Por isso, eu lhe suplico: Tome cuidado!
                Aquele caso parecia aprofundar-se ainda mais no mistério, e a história das velas que se apagavam causou um frio na barriga do homem. Mas não era de se amedrontar. Não existe um porão que não assuste, cause arrepios. É um lugar escuro, e nossa imaginação se aproveita para criar monstros, vozes e imagens através de nosso medo. Eu já sou bem maduro para ter medo do escuro e Janet já está perto dos sessenta. Velhos se assustam com qualquer coisa, pensou ele.
                Retirando uma seringa com sedativo do bolso, Logan foi em direção aos degraus, dizendo suas últimas palavras a Janet:
                - Não se preocupe. Tudo vai dar certo. Eu prometo.
                O homem desceu lentamente e silenciosamente as escadas, emitindo um baixo ranger da madeira dos degraus. As paredes estavam pretas e manchadas pelo mofo e, no fim daquele estreito caminho, uma velha porta finalizava o trajeto. Enquanto Janet observava de cima, Logan acendia uma vela e encaixava a chave – concedida por Janet – na fechadura, girando-a pouco a pouco.          
                Um barulho do lado de dentro: O susto. A paralisação nos movimentos cautelosos do doutor para abrir a porta fora de imediato. O som era semelhante a ferramentas caindo no chão. Sim. Ela está lá dentro, pensou atencioso a qualquer barulho emitido detrás daquela porta.
                Por fim, ele a empurrou e, ao fazer isso, deparou-se com um mundo de extrema escuridão. Escuridão essa que nem a chama de uma mísera vela poderia iluminar.
                - Consegui Janet! – exclamou ele, satisfeito por conseguir abrir uma simples porta (na verdade, estava tentando obter companhia e diálogo com a mulher, para que não se sentisse tão sozinho naquele mar negro que era o porão. Sim. Ele estava começando a sentir medo) – Janet! Janet... Janet?
                Ele dissera aquilo simplesmente ao vazio do lugar, ou as escadarias, ou a ele mesmo, pois Janet já não estava mais por perto. Desaparecera repentinamente, tão silenciosa que ele nem percebera sua ausência enquanto abria a porta.
                Onde estaria ela? A mãe desesperada pelo socorro da filha. Que ligara ao homem suplicando que a ajudasse. Onde estaria?
                Na cozinha, sentada à mesa, a mulher saboreava uma refeição. A sopa descia como um calmante para seu corpo. Seus olhos eram decaídos e sem foco. Os chamados de Logan não a incomodavam, nem tampouco despertava-lhe interesse de saber o que estava acontecendo.
                A energia fria e negativa arrepiava o corpo de Logan. Seu coração batia mais forte e acelerado. A respiração era mais forçada e a fraqueza o tomava. Suas pernas tremiam.
                Meu Deus do céu! Que presença é essa? - Questionava-se enquanto tentava enxergar algo. Ele tinha que ver alguma coisa. Qualquer coisa. Aquela obscuridade apenas aumentava o medo e o temor de quem poderia estar ali, além de Meg.
                - Meg? Meg, você está aí? – dizia ele, movimentando a vela para clarear algo que pudesse ver. Mas, quanto mais ele se aproximava adentro do porão, mais escuro parecia estar.
                Enquanto chamava pela garota, uma leve e fria brisa empurrava a porta lentamente, sem que ele percebesse.
                Um estrondo: A porta se fechou.
                Um sopro demoníaco: A vela se apagou.
                O desespero o tomou por completo. Sua expressão não pudera ser vista através daquela escuridão maldita, mas sua voz berrante, alta e trêmula definia o medo que estaria sentindo.
                Ele não poderia enxergar absolutamente nada. Não podia ouvir qualquer som. Não conseguia se mexer pelo fato de temer tocar em algo indesejável.
                - Meg. Meg! Apareça! – Seus gritos eram para aliviar-se do próprio medo. A porta já não era mais visível – Senhora Janet! Janet! Desça aqui! Ajude-me! Abra a porta! Socorro!
                Janet continuava a tomar a sopa, independente do que conseguia ouvir.
                Um sussurro indecifrável soou aos arredores do porão.
                - Meg? Meg! – Exclamou ainda mais alto, agora movimentando os braços ao vazio, para tentar tocar em Meg, mas a voz parecia sair de um lugar distante. Uma voz suave, aguda, de criança exausta, cansada – Por favor, toque em mim se estiver por perto. Meg toque em mim!
                Logan preparava sua seringa para sedá-la quando, de repente, uma série de risos tomou o porão. Risos agudos que iam ficando cada vez mais graves até chegar a um tom descomunal, inacreditável, assustador, não-humano.
                - MEG VOCÊ TROUXE O QUE EU QUERIA?! TROUXE CARNE FRESCA?! – disse a voz desafinadamente baixa, parecendo estar vindo das profundezas do inferno.
                Aquela não era a voz de Meg, nem tampouco a própria menina.
                - Jesus... Quem está aí? Quem é você? Cadê a Meg?! – questionou Logan, trêmulo e tropeçando nas palavras, deixando cair a seringa ao chão. O medo estava em seu limite e seu coração pulsava demasiadamente, a ponto de sair pela garganta.
                Desesperado, ele procurou um fósforo, ou um isqueiro para acender e iluminar o local e ver, de uma vez por todas, o ser que poderia estar na sua frente, ou ao seu lado, ou em qualquer outro lugar daquele porão escuro e diabolicamente assustador.
                Ele encontrou o isqueiro em seu bolso. A primeira tentativa foi em vão: A chama não acendeu e apenas uma faísca surgiu no objeto.
                Segunda tentativa: novamente uma faísca.
                O coração batendo cada vez mais forte, a respiração forçada, o suor escorrendo da testa, a tremedeira. A sensação de que alguma coisa não-humana estaria com ele. Poderia ser parte de sua imaginação. Eu estou imaginando coisas, pensou ele, tentando se concentrar em ascender novamente o isqueiro. Eu estou tendo apenas alucinações. Tudo isso é mentira. É pura imaginação. Não existem coisas do outro mundo. Nem fantasmas, nem espíritos... Deve ser apenas Meg tentando me assustar. Ela é louca... Louca. Louca!
                Naquele momento, era de se esperar que o doutor já estivesse ficando louco: Não podendo enxergar nada, nem se movimentar, sem nenhuma companhia amigável, apenas na companhia do medo.
                A terceira tentativa de acender aquele isqueiro – e, ao mesmo tempo, o ouvir de uma voz infernal soltando uma série de gargalhadas desafinadas e graves.
                Ele puxou o gatilho do objeto: A chama se acendeu e mostrou, de repente, de frente para Logan, a pura face do demônio: Um rosto desfigurado, apodrecido drasticamente. Olhos extremamente negros e dentição afiada. Ela sorria para o doutor, que estava paralisado ao presenciar tal imagem de horror. Sua voz não queria sair. Ele não conseguia gritar.
                A chama em sua mão se apagou, trazendo a pura escuridão novamente. O grito descomunal e altamente berrante pudera ser ouvido a quilômetros de distância através do eco.
                Da cozinha, Janet sorria, ainda tomando a sopa, enquanto a menina Meg surgia, sentando ao seu lado, descabelada, rosto sujo e dentes quebrados. Ela estava na verdade, todo esse tempo, em seu quarto. A interpretação de assustada e desesperada de Janet fora o suficiente para fazer com que Logan entrasse no porão e servisse de jantar para alguém que lá vive. Na verdade, algo.
               - Pronto, Meg, eu fiz o que você queria. Agora Rebeca está jantando – disse Janet, sorrindo satisfeita para a menina.
                - Obrigado, mãe – agradeceu Meg, com uma voz suave e encantadora de menina inocente. Ela parecia não ser louca, mas era. E a surpresa: Sua mãe também era.
                Os gritos agonizantes de Logan ainda podiam ser ouvidos e, junto deles, o som irritante e angustiante da carne sendo rasgada e ossos serem quebrados. Mas aquilo não incomodava as duas mulheres. Para elas, era apenas o jantar de mais uma moradora daquele lugar maldito. Um ser, um bicho, um monstro, demônio.
                Sim. Era o demônio.
               

Epílogo:

                Janet discou desesperadamente os oito dígitos para se comunicar com o instituto psiquiátrico. Os distúrbios de Meg estavam piores do que antes.
                - Instituto Psiquiátrico. Podemos ajudar?
                - Socorro! Por favor, preciso de ajuda imediatamente!
                - Com quem eu falo, por favor, e o que aconteceu?
                - Meu nome é Janet e eu tenho uma filha que sofre de distúrbios mentais. Ela piorou, não fala mais, urina quando está andando e quebra tudo o que encontra pela frente. Não sei mais o que fazer! Preciso que me mandem um médico para examiná-la!
                - Senhora, enviaremos um médico o mais rápido possível. Mas, diga-me: Onde a senhora a deixou neste momento?
                - Ela está muito agressiva... Não tive outra escolha a não ser... Trancá-la no porão...

Fim
               
Valdir Luciano - 2010  
              

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